Vejamos, agora, qual o caráter da Inquisição.
Se consultarmos os tratados jurídicos do século passado, e outros ainda anteriores, veremos a Inquisição sempre classificada como tribunal eclesiástico. É o que faz, entre outros, Pereira e Souza.
No entanto, convém ponderar que o tribunal eclesiástico era, não aquele que funcionava em virtude da autoridade da Santa Sé, mas sim o tribunal que, embora composto por eclesiásticos, estava subordinado, como órgão da administração pública, aos soberanos temporais.
Não existe, pois, entre a Inquisição e a Igreja, a solidariedade que liga o mandatário ao mandante.
Muito pelo contrário, demonstraremos:
a) que a Inquisição independia das ordens do Santo Padre, estando subordinada diretamente aos soberanos espanhóis;
b) que a Inquisição era malvista e combatida pela Igreja, por causa de sua crueldade.
A primeira das afirmações, podemos fundamentá-las com as seguintes provas, facilmente verificáveis em Justino Mendes ("A Igreja e a História"): o Papa concedeu certificados de ortodoxia a indivíduos acusados pela Inquisição; esta, longe de acatar respeitosamente, como faria um tribunal dependente da Igreja, as ordens do Santo Padre, decretou a pena de morte a quem se munisse de tais certificados.
Onde a obediência que necessariamente caracterizaria a Inquisição, se fosse sujeita à Igreja, e considerada mero departamento desta?
Em 1842, Sixto IV dirigiu um breve severo aos reis da Espanha, contra os excessos da Inquisição.
Ora, se esta dependesse do Santo Padre, para que dirigia ele o breve aos reis, e não diretamente aos Inquisidores? Acresce que aos reis cabia até o direito de demitir os Inquisidores, poder este exercido sobre 12 dentre eles.
Além disso, para corroborar ainda mais nossas afirmações, basta lembrar que a Inquisição estava encarregada de julgar os crimes de contrabando e estelionato.
Ora, como poderia um tribunal eclesiástico tomar conhecimento desses crimes?
Quanto à segunda afirmação, de que a Santa Sé combateu a Inquisição por causa de suas crueldades, basta lembrar os seguintes fatos.
Em 1842, Sixto IV pedia aos reis de Espanha, "pelas entranhas misericordiosas de Jesus", que refreassem os ardores criminosos da Inquisição.
Llorente cita diversas desavenças dos Papas com os reis, por causa dos excessos da Inquisição. O mesmo historiador faz menção de indivíduos secretamente absolvidos pelo Papa, depois de condenados pela Inquisição.
Em 1519, Leão X excomungou os inquisidores de Toledo, para punir sua crueldade (é esta a maior pena que um Pontífice possa aplicar a um católico).
Paulo III aliou-se aos napolitanos para impedir que se instalasse em Nápoles a Inquisição. Pio IV e São Carlos Borromeu opuseram-se à sua introdução em Milão.
Logo, a Inquisição, sempre desaprovada pela Igreja, não foi um produto do espírito de catolicismo de certo elemento clerical, mas, muito ao contrario, um fator das mais censuráveis revoltas contra o intangível poder dos Pontífices Romanos, aos quais, pois, não cabe a menor responsabilidade quanto aos horrores da Inquisição.